Brasil vira antagonista dos EUA na ONU no primeiro encontro cara a cara entre Lula e Trump

_Essa é a primeira viagem oficial de Lula aos EUA desde a posse de Trump, em janeiro. Desde então, a relação do Planalto com a Casa Branca piorou_

Lula chega a Nova York, recebido pelo embaixador brasileiro na ONU, Sérgio Danese Foto: Ricardo Stuckert / PR

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva deve se converter no principal antagonista do presidente americano, Donald Trump, durante a abertura da 80ª Assembleia-Geral das Nações Unidas (ONU).
Essa é a primeira viagem oficial de Lula aos Estados Unidos desde a posse de Trump, em janeiro. Desde então, a relação do Palácio do Planalto com a Casa Branca piorou sensivelmente.
O presidente desembarcou na noite de domingo, dia 21, com uma comitiva mais enxuta que de costume e foi alvo de protestos de opositores . As atividades oficiais começam na manhã desta segunda-feira, dia 22.
Os presidentes poderão se encontrar cara a cara pela primeira vez nos corredores da ONU. Como de praxe, cabe ao Brasil fazer o discurso de abertura do Debate Geral da assembleia, na manhã de terça-feira, dia 23.

Crise na relação bilateral

Trump ocupará a tribuna logo após Lula encerrar seu pronunciamento. O governo brasileiro entende que os contrastes com Trump ficarão claros nos discursos de ambos.
Não há pedidos de conversa articulada entre eles. O governo Lula receia de gestos de humilhação ao presidente e pondera que o ambiente não é propício para uma discussão substantiva da relação bilateral, mas não descarta um aperto de mãos caso se cruzem no corredor. Lula deve assistir ao discurso de Trump no plenário.
Os mais experientes ex-embaixadores brasileiros em Washington, estudiosos da relação bilateral, classificaram o atual momento como o pior em 200 anos de relações diplomáticas. Ameaças de novas punições ao Brasil em virtude do apoio de Trump ao ex-presidente Jair Bolsonaro tendem a degradar ainda mais esse relacionamento e podem ser concretizadas durante a estada do petista nos EUA.
Esses diplomatas avaliam que Lula errou ao apoiar os democratas para sucessão de Joe Biden, mas concordam que o republicano praticou uma ingerência na política doméstica brasileira. Eles divergem sobre a conveniência de um contato direto e pessoal com Trump, como um telefonema.
Os diplomatas dos dois países não escondem que a divergência tem razão política. A Casa Branca insiste na tese de suposta defesa da liberdade de expressão por parte de Trump, que vê uma caça às bruxas na condenação de Bolsonaro, com quem ele se comparou, e na alegada perseguição às plataformas digitais – big techs.
O Planalto, porém, enxerga no tarifaço de 50% e na pressão por meio de sanções pessoais (corte de vistos e cerco financeiro da Lei Magnistky) a ministros do governo e do Supremo Tribunal Federal, sobretudo a Alexandre de Moraes, uma tentativa de ingerência nas eleições de 2026. Segundo essa leitura, Trump quer ver um governo “submisso” no maior país da América Latina, conter a esquerda e uma postura “insubordinada” de Lula no que consideram o “quintal” e zona de crescente influência geoeconômica da China.
De visões opostas sobre conflitos geopolíticos à emergência climática, passando pelo tarifaço global e pelo debate sobre regulação big techs, há uma série de pontos de choque entre os governos de Brasil e Estados Unidos.
Nos bastidores, existe o temor de que autoridades públicas brasileiras sejam alvo de novas sanções ou até mesmo que o País sofra com novas tarifas e sanções secundárias sobre a compra do diesel e fertilizantes russos. Caso se confirmem, Lula deve reagir já na tribuna da ONU.
Antes da Assembleia, o Departamento de Estado retardou a concessão de vistos diplomáticos e impôs restrições de locomoção a mais de um representante do governo brasileiro.
Impedido de circular livremente em NY e de ir a uma reunião de ministros da Saúde em Washington, como pretendia, Alexandre Padilha desistiu de viajar. Em carta, apontou obscurantismo e prejuízos potenciais ao País.
Integrantes da delegação brasileira que ocupam postos de menor escalão receberam a restrição de se locomoverem apenas em Nova York.
Como mostrou o Estadão, essa mesma restrição tem sido aplicada a regimes rivais dos EUA e autoritários: China, Rússia, Irã, Síria, Venezuela e Cuba.
Em vez de discutir o caso diretamente com o Departamento de Estado, o governo Lula tomou a iniciativa de escalar o que considera uma decisão arbitrária e descabida. Pediu intervenção do secretário-geral da ONU, António Guterres. O chanceler Mauro Vieira escreveu uma carta a Guterres.
O episódio não deve passar batido do discurso do petista. O presidente considera mencionar em tom de repúdio a restrição inédita à comitiva do Brasil e o banimento completo da delegação Palestina.
Como será o discurso
Preparado a várias mãos há dias, o discurso de Lula é considerado como a principal peça de política externa do País e deverá percorrer as prioridades brasileiras e uma avaliação sobre temas mais importantes do mundo.
No Planalto, a ideia é mandar uma mensagem “clara” e “firme” sobre as posições do Brasil e responder a Trump, ainda que Lula não deseje mencioná-lo nominalmente.
É provável que ele adote referências aos EUA como “a maior potência militar do mundo”, que já usou recentemente na reunião virtual de líderes do Brics. Em entrevistas, apontou Trump como “imperador do mundo”.
Isso porque a diplomacia entende que este discurso será atentamente acompanhado nas capitais do mundo, pelos líderes políticos e especialistas em política externa e deve ter uma linguagem compatível e ênfases diferentes de pronunciamentos domésticos.
Lula citou no 7 de Setembro que o País “não será mais colônia de ninguém”, um exemplo de mais fácil compreensão. Um termo mais adequado ao Debate Geral seria uma menção à “descolonização” desde a criação da ONU, exemplificou um embaixador.
A postura de enfrentamento recebeu elogios fora do País e rendeu dividendos políticos na avaliação do governo, algo que o Planalto não quer deixar escapar.
O presidente pretende fazer uma defesa enfática da soberania nacional, frente aos ataques de Washington, da democracia e da independência das instituições democráticas. A divergência de Luiz Fux no julgamento de Bolsonaro pode ser um ponto para rebater que não houve perseguição nem processo viciado. Em recente artigo no New York Times, Lula disse ter orgulho do Supremo Tribunal Federal e reiterou que sempre esteve aberto ao diálogo.
Crise do multilateralismo
Lula vai citar a crise do multilateralismo, a proliferação de guerras e a necessidade de reformar o Conselho de Segurança da ONU, referência à campanha por um assento brasileiro permanente, para melhor representar a nova ordem multipolar.
O petista também deve citar as prioridades da COP-30 e criticar quem põe em xeque as mudanças climáticas. Nesse sentido, vai cobrar financiamento dos países ricos e falar das preparações em Belém e do novo fundo para conservação florestal.
No campo comercial, ele deve propor a reforma da OMC para fortalecer a instituição, hoje paralisada pelos americanos.
Críticas a Israel
Lula também deve qualificar como “genocídio” a atuação de Israel na Faixa de Gaza e manifestar publicamente o apoio do Brasil ao processo contra o governo israelense na Corte Internacional de Justiça. O presidente também deve defender a criação do Estado Palestino, tema de uma conferência nesta segunda da qual participa. O Brasil elogiou o reconhecimento anunciado por Austrália, Canadá, Reino Unido e Portugal.
Também podem ser objetos de menção os bombardeios ao Irã e ao Catar, desdobramentos da crise no Oriente Médio, e o envio da frota naval e área militar americana para o Mar do Caribe, sob argumento de combate a cartéis de drogas, sobretudo na costa da Venezuela.
O presidente deve rejeitar ainda a classificação de narcotraficantes como terroristas para justificar o emprego de Forças Armadas e considera que os navios e caças dos EUA trazem tensão a uma zona de paz.
O petista deve enfatizar o respeito à autodeterminação dos povos e soberania dos países – algo “inegociável”, como vem frisando.
Sobre a guerra entre Rússia e Ucrânia, vai voltar a defender que a solução negociada tem de considerar preocupações de segurança dois dois lados e pode mencionar os diálogos abertos por Trump com Vladimir Putin e a iniciativa sino-brasileira que lançou há um ano em NY o Grupo de Amigos da Paz do Sul Global.
Por fim, Lula voltará a mencionar a necessidade de regulação de responsabilidades no ambiente digital, de iniciativas para promover a segurança alimentar e saúde pública, temas sobre os quais discorreu no Brics e no G-20.

Estadão Conteúdo
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