TULIO KRUSE, FERNANDA PERRIN, IVAN FINOTTI E NELSON DE SÁ SÃO PAULO, SP, WASHINGTON, EUA, MADRI, ESPANHA, E TAIPÉ, TAIWAN (FOLHAPRESS)
As polícias de ao menos 25 países utilizam câmeras corporais que registram suas ações em serviço. Ao redor do mundo, a discussão sobre o uso do equipamento tem variado entre o otimismo e a incerteza em relação aos resultados.
Pesquisas apontam para uma grande variação na eficácia da tecnologia para coibir casos de violência –praticada por e contra agentes de segurança–, aumentar a produtividade no atendimento a ocorrências e gerar confiança na polícia. O motivo está na diferença das regras para o uso dos equipamentos, como a autonomia do policial para acionar a gravação, o acesso do público às imagens e como elas devem ser manejadas durante uma investigação.
Enquanto no Brasil há estados em que o acionamento da câmera é automático, caso de Santa Catarina, em países como Reino Unido, Estados Unidos e França o uso é diferente: na maior parte dos departamentos, os policiais acionam a gravação manualmente.
Na Europa, o equipamento é utilizado há quase 20 anos, mas o objetivo principal não é reduzir a letalidade policial. O foco é melhorar o serviço prestado pelos agentes de segurança à população. Em 2014, a polícia de Londres adotou as câmeras para todos os policiais que trabalham em contato com o público.
Além de proteger os policiais e servir como evidência, a introdução das câmeras corporais na Alemanha teve uma justificativa extra. Como aumentou o número de cidadãos que começaram a filmar as ações policiais com o celular, o equipamento da corporação passou a servir como um contraponto à possíveis edições maliciosas do conteúdo.
Na Ásia, a violência contra policiais durante protestos serviu de pretexto para dar início ao uso de câmeras pela polícia, mas há receio de que o equipamento possa servir para cercear manifestações políticas.
Em Hong Kong, onde os testes começaram em 2013, as câmeras foram implantadas amplamente a partir de 2017. Uma das justificativas eram episódios de violência em eventos públicos, com as câmeras servindo para, por exemplo, comprovar ataques a policiais. Mas organizações acusaram policiais de romper suas próprias normas ao usar as câmeras em protestos políticos no final do ano, gravando indivíduos, não a multidão.
A implementação está iniciando em Portugal neste ano, e os primeiros equipamentos já foram entregues à Polícia Marítima. No Japão, a previsão é que policiais passem a usar o equipamento ao longo de 2024.
“Análises sugerem que restringir a discricionariedade [autonomia] dos agentes para ligar e desligar câmeras corporais pode reduzir o uso da força pela polícia, mas é necessário mais avaliações”, diz o texto de uma das pesquisas mais abrangentes sobre o tema, feita em 2020 na Universidade George Mason, dos EUA, que revisou 30 estudos sobre câmeras corporais em vários países. Esse ponto é citado em diversos outros estudos que avaliaram o uso da tecnologia, em departamentos de polícia americanos e em outros países.
Essa hipótese tem sido reforçada por análises mais recentes. “Uma revisão abrangente de 70 estudos sobre o uso de câmeras corporais constatou que a maior parte das pesquisas sobre câmeras corporais não demonstrou efeitos consistentes ou estatisticamente significativos”, afirma o Instituto Nacional de Justiça dos EUA, braço do Departamento de Justiça americano voltado para estudos e avaliação de políticas públicas.
Segundo o órgão, mais estudos são necessários para permitir uma análise do impacto do uso das câmeras.
No Brasil, levantamento da FGV (Fundação Getulio Vargas) apontou redução de redução de 57% nas mortes por intervenção policial nos batalhões da PM de São Paulo entre 2021 e 2022, em comparação com as unidades que não usavam o equipamento. Já em Santa Catarina, pesquisa feita por universidades do Reino Unido e pela PUC-Rio apontou queda de até 61% no uso de força pelos agentes de segurança.
Em lugares onde o uso excessivo da força é central no debate público, há maior preocupação com brechas nas regras e com o risco de que as câmeras não sejam usadas da maneira como mandam os protocolos.
É o que pode ter ocorrido em 30 de julho do ano passado em Guarujá, no litoral paulista. Imagens de uma câmera corporal mostram que, às 7h45 daquele dia, o sargento da PM Eduardo de Freitas Araújo apontava um fuzil em direção à porta de um barraco.
Na ação, um homem que estava dentro do imóvel foi morto. Ele não aparece na imagem no momento do tiro –apenas o fuzil do policial e a porta. O sargento e outros três PMs disseram em depoimento que o policial gritou “larga a arma” ao suspeito.
A cena, porém, não tem som. A defesa dos policiais afirmou que as câmeras “estavam em ‘modo recall’, ou seja, por descuido, não foram acionadas para o ‘modo evidência'”. O “recall” é um tipo de gravação armazenada em qualidade mais baixa e sem som, destinado a situações corriqueiras que não envolvem perigo.
Para passar do “recall” para o “evidência”, é preciso que o próprio PM aperte um botão. As diretrizes da PM exigem que isso seja feito em qualquer ação policial ou abordagem, para que a ocorrência seja gravada com qualidade total.
O caso gerou a primeira denúncia criminal contra policiais da Operação Escudo, ação mais letal da PM paulista desde o massacre do Carandiru, com 28 mortos. A operação tem sido citada por especialistas brasileiros como um exemplo de que a câmera, sozinha, não resolve o problema da violência policial.
Neste caso, porém, o vídeo serviu como o principal elemento de acusação. A defesa dos policiais afirma que a acusação parte “de análise equivocada dos fatos, não havendo razões jurídicas para que as acusações prosperem”.
No Brasil, ao menos oito estados têm PMs que usam câmeras na farda: São Paulo, Minas Gerais, Pará, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Roraima, Rondônia e Santa Catarina. O Paraná deve iniciar seu programa a partir de fevereiro. E o Ministério da Justiça elaborou um projeto de lei que busca institucionalizar o uso das câmeras pelas forças de segurança do país.
Em São Paulo, porém, há dúvidas sobre a continuidade do uso das câmeras pela PM. O governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) declarou em dezembro que os equipamentos não têm nenhuma efetividade para a segurança dos cidadãos e renovou o contrato do programa apenas até junho. O orçamento foi reduzido e um estudo que havia mostrado o impacto das câmeras foi descontinuado.
“Não é um problema de desenho do programa, e sim de supervisão da tropa”, diz a diretora executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Samira Bueno, que estudou o programa de câmeras corporais da PM paulista.
As câmeras da PM paulista têm uma particularidade: elas são programadas para filmar durante todo o turno, enquanto na maior parte do mundo é o próprio policial quem decide quando gravar.
Esse é considerado um dos maiores problemas no uso das câmeras no mundo todo, quando a questão é controle policial. “Os estudos mostram que os policiais acionam a câmera, em média, em só um terço das ocorrências, em várias polícias nos Estados Unidos, no mundo todo”, diz Samira.
Em Santa Catarina, primeiro estado brasileiro a adotar a tecnologia, a gravação se inicia automaticamente após policiais comunicarem ocorrências ao centro de controle da PM. Houve resistência da categoria a esse sistema, mas o Tribunal de Justiça do estado confirmou que essa deve ser a regra.
A gravação apenas após acionamento do botão manual, por decisão do policial, é a regra no mundo. Há outros modelos: em Louisville, no estado americano de Kentucky, por exemplo, isso ocorre quando a arma do policial é retirada do coldre.
O custo do programa é diretamente afetado pelo método de acionamento da câmera. Quanto mais gravações, mais espaço de armazenamento nos bancos de dados será necessário. Em São Paulo, o custo total foi de R$ 7 milhões por mês no ano passado, considerando todo o valor destinado ao programa no orçamento.
O acesso às imagens por policiais sob suspeita é outro aspecto citado como crítico por especialistas. Esse acesso, em São Paulo e Santa Catarina, é permitido. Os PMs podem ver as imagens das próprias câmeras por meio de um aplicativo de celular.
“Essas tecnologias vieram para ficar, elas ajudam muito no processo de planejamento de segurança pública”, diz o professor Leandro Piquet Carneiro, coordenador da Escola de Segurança Multidimensional da USP. Ele foi um dos coordenadores de um estudo que mostrou uma queda nas mortes de policiais e de suspeitos em São Paulo nos batalhões que usam a tecnologia, além de um aumento de produtividade. Outras pesquisas feitas com a PM de São Paulo chegaram a conclusões semelhantes.
“Em outros países, não se discute abandonar esse recurso. Na Europa e nos Estados Unidos, estão investindo muito pesadamente nisso porque em todo o espectro de tecnologia, e principalmente tecnologia de imagem, o custo disso era absurdo e, a cada ano, diminui”, diz o professor.