Carnaval e tradições culturais brasileiras vivem conflitos com evangélicos

Por Maurício Meireles | Folhapress

Foto: Reprodução / Tourb

Quando estendeu a mão para a porta-bandeira, ele não ouviu o samba-enredo –e sim um louvor. Em vez dos refletores, ele via uma luz ainda mais forte. É assim que Lilico da Mangueira, um dos grandes mestres-salas da escola de samba, diz se lembrar de sua despedida da avenida, em 1990, em depoimentos a veículos evangélicos.
Lilico, hoje conhecido como pastor William, deixou a verde e rosa porque se converteu. Na época, o bar Só para Quem Pode, reduto boêmio do morro, tinha dado lugar a uma igreja batista, e os mangueirenses lamentavam a perda de integrantes para a religião.
O caso era o prenúncio de um fenômeno que se expandiu com os anos. De lá para cá, os evangélicos passaram a representar cerca de um terço da população brasileira. Os relatos de uma convivência conflituosa com festas da cultura popular se tornaram mais e mais comuns, especialmente em manifestações ligadas à herança africana.
O escritor e pesquisador Luiz Antonio Simas, por exemplo, atribui à expansão evangélica uma mudança no perfil da ala das baianas de várias escolas de samba, que passaram a perder integrantes para denominações pentecostais e neopentecostais.
A perda de baianas pode ser um problema para as agremiações, porque, pelo regulamento dos desfiles, é necessário ter um número mínimo delas na avenida.
"As escolas abriram espaço para pessoas que desfilavam em outras alas, até para pessoas de fora da comunidade", afirma Simas. "Não tinha mais como fazer só com pessoas da comunidade. Se hoje você pega o Salgueiro achando que vai achar só as velhas do morro, não vai de jeito nenhum."
O escritor lembra que as escolas também expandiram o número de baianas mais jovens.
"Em algumas escolas, começaram a trazer baianas de fora. Na Intendente Magalhães foi um negócio devastador. A Acadêmicos da Rocinha perdia pontos por não conseguir o número mínimo de baianas necessário."
No Carnaval de Pernambuco, a questão é o maracatu. Ao longo dos anos, surgiram grupos evangélicos que se apresentam pelo Recife.
"É um grande desrespeito. São vários grupos que tocam maracatu para tirar o pessoal que gosta de tocar. Mas maracatu é o candomblé na rua", diz o mestre Chacon Viana, do maracatu Porto Rico, que também é babalorixá.
O maracatu não é apenas um gênero musical ou um mero cortejo. A tradição tem fundamentos religiosos, com ligações seja com o culto aos orixás ou com os caboclos da jurema. É comum que os grupos mais tradicionais estejam ligados a uma casa de santo.
"Acontece de perdermos integrantes", afirma mestre Chacon. "No Porto Rico tinha uma menina que nasceu dentro do maracatu, toda a família [dela] cresceu. De repente, ela se converteu e tirou todo mundo."
Chacon atribui os ataques não só à intolerância religiosa, mas ao racismo. "Eu não posso chegar em um ônibus e começar a cantar música do meu terreiro. Mas eles podem. Vivemos na defensiva toda hora", afirma.
Os conflitos religiosos chegaram mesmo a afetar o dia a dia de um símbolo tipicamente brasileiro: os tabuleiros das baianas de acarajé.
O ofício dessas profissionais foi registrado como patrimônio cultural do país em 2004 pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). O registro leva em conta mais do que o acarajé ou a própria baiana: ele inclui ainda as formas de preparo das comidas, as roupas, o preparo dos tabuleiros etc.
Isso não impediu que algumas baianas convertidas a igrejas evangélicas se recusassem a usar os trajes típicos –ou mesmo uma tentativa, hoje derrotada, de rebatizar o acarajé como "bolinho de Jesus".
A guerra do acarajé levou a uma ação do poder público. Em 2015, a Prefeitura de Salvador publicou um decreto que obriga as donas de tabuleiro a usar as vestimentas.
"Temos conseguido, aos poucos, ir conversando. Temos baianas de acarajé evangélicas que se vestem direitinho. Com outras, mais radicais, tento explicar que a cultura é essa, que a roupa é como uma farda", diz Rita Santos, presidente da Associação Nacional de Baianas de Acarajé e de Mingau.
"Na avenida Sete de Setembro, elas não vestem a roupa, querem colocar a bíblia em cima do tabuleiro… aí eu bato em cima, chamo a vigilância sanitária."
Incomoda aos evangélicos o fato de, no candomblé, o acarajé ser ligado a Iansã. Por isso, medidas como colocar a bíblia ou óleo ungido sobre o tabuleiro são uma tentativa de dessacralizar aquele alimento –mesmo fora de um contexto religioso.
Para esfriar os ânimos com grupos evangélicos, há quem tente defender que o acarajé é apenas uma comida, sem relação religiosa fora dos terreiros.
"Mas, para as baianas que não são evangélicas, o acarajé ser visto como qualquer comida também não é bom, porque elas são herdeiras de Iansã", afirma a antropóloga Débora Simões. "Não dá para comparar com um hambúrguer. É algo que tem uma história, uma origem que é negra e precisa ser valorizada."
Para o pesquisador Luiz Antonio Simas, o avanço evangélico tem gerado reações em comunidades ligadas a essas manifestações culturais –como as escolas de samba. Um exemplo é o fortalecimento de enredos de temas afro-brasileiros, algo que foi forte nos anos 1990 e no começo dos 2000, mas que vinha se esvaziando.
"No ano passado, a Grande Rio venceu o Carnaval falando de Exu", lembra Simas.
O mesmo se repete em 2023. Império Serrano e Grande Rio, por exemplo, levaram à avenida no último domingo (19) enredos sobre Arlindo Cruz e Zeca Pagodinho, mas com sambas que faziam referência à cultura de terreiro na trajetória dos dois.
Na segunda-feira (20), a Paraíso do Tuiuti falou dos búfalos da Ilha de Marajó, mas relacionando os animais aos mitos de Iansã.
Postagem Anterior Próxima Postagem

Leia o texto em voz alta: